Bem-estar e Ciência das Relações

Maria Cristina Valzachi

Quando pequena, eu adorava ver aqueles livros cheios de figura, mesmo antes de aprender a ler ...

Emoções de hoje, lembranças de amanhã

Quando pequena, eu adorava ver aqueles livros cheios de figura, mesmo antes de aprender a ler, olhava para todos aqueles desenhos e cores e ficava encantada. Lembro até hoje das histórias que meus pais me contavam antes de dormir, às vezes era meu pai e às vezes era minha mãe. A alegria que eu sentia naqueles momentos era tão grande, que mesmo após tantos anos, ainda tenho a esperança de um dia poder contar as mesmas histórias para meus filhos, sem nem mesmo precisar dos livros. Na verdade, é fácil lembrar-se dos momentos que foram especiais em nossa vida, e (infelizmente...) difícil esquecer-se daqueles que mais desejamos apagar de nossa memória. Por que será que algumas de nossas lembranças permanecem vivas durante tanto tempo, enquanto outras são rapidamente esquecidas, vamos tentar entender um pouco melhor?

As experiências externas chegam ao sistema nervoso através dos sentidos, assim, os primeiros processos mnemônicos são pré-conscientes e ocorrem nos sistemas sensoriais, são informações que armazenamos por um curto período de tempo e que nem mesmo temos consciência. No entanto, apenas parte dessas informações iniciais é guardada em nossa memória de longo prazo, enquanto outra parte é rapidamente perdida. Diversos estudos demonstraram a existência de sistemas moduladores da memória, capazes de interferir no seu armazenamento, e constataram que até mesmo hormônios, cuja ação nem sempre é exercida diretamente sobre o sistema nervoso central, podem contribuir para essa modulação, especialmente aqueles que têm participação nos fenômenos emocionais, como os envolvidos no estresse.

Os eventos estressores ativam a amígdala (complexo de núcleos situado no lobo temporal medial), e esta parece intermediar a ação de hormônios e estímulos emocionais sobre a consolidação da memória. A noradrenalina tem papel proeminente nessa ativação, atuando por meio da indução de um estado de hipervigilância que ajuda a lembrar do evento. Esse efeito mnemônico aumenta quando a situação é suficientemente estressante para levar à liberação de uma quantidade substancial de corticosteroides, que atingem a amígdala. A combinação dos dois hormônios, nesse caso, tem ação sinérgica e leva ao reforço da memória; no entanto, é interessante notar que aumentos nos níveis de corticosteroides que não estão sincronizados com a liberação de noradrenalina têm efeito contrário, isto é, podem prevenir ou suprimir seu efeito sobre a memória.

A amígdala tem sido historicamente relacionada a emoções negativas, por exemplo, quem nunca se assustou vendo aquelas cenas nos filmes de terror, em que tudo está quieto e, de repente, surge uma criatura estranha e perigosa? Nesse momento, ocorre ativação da amígdala, que ao disparar, envia uma mensagem de risco iminente a outras áreas cerebrais, que preparam o organismo para a luta ou fuga. No entanto, embora ela possa ser vista como um dispositivo protetor, que previne o envolvimento do indivíduo em comportamentos potencialmente perigosos, diversos estudos têm verificado sua participação no processamento de emoções positivas. Demonstrou-se que essa estrutura medeia as associações entre a entrada sensorial e o seu valor emocional positivo, influenciando as respostas comportamentais, ainda que de forma inconsciente, e comprovando que o seu papel nesse caso é pelo menos tão importante quanto nas emoções negativas. 

Há outros eventos capazes de fortalecer ou enfraquecer nossas lembranças, sejam eles naturais, como o estado de alerta e atenção; ou artificiais, como a administração de drogas. No entanto, os principais moduladores de nossa memória são as emoções, uma vez que guardamos com mais facilidade os fatos de nossa vida que têm um forte componente emocional. Isso é bem interessante quando levamos em consideração o fato de que nossas memórias são guias constantes em nossas vidas, influenciando a maneira como nos comportamos, pensamos, tomamos decisões e interagimos uns com os outros, especialmente quando se tratam de memórias implícitas (ver post anterior), às quais não temos acesso consciente. Isso me leva a pensar na possibilidade de que talvez possamos dar uma forcinha para as nossas lembranças, isto é, se pudéssemos criar mais experiências positivas em nossas vidas, ou aumentar nossos bons momentos, será que teríamos mais “circuitos positivos” a nosso favor?

 

Referências bibliográficas

Joëls M, Fernandez G, Roozendaal B. Stress and emotional memory: a matter of time. Trends in Cognitive Sciences. 2011; 15(6):280-88.

Lent, R. Pessoas com história. As bases neurais da memória e da aprendizagem. In: Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências (Lent, R.). 2001; p.587-617, Editora Atheneu.

Murray, EA. The amygdala, reward and emotion. Trends in Cognitive Sciences. 2007; 11(11):489-97.

Figura adaptada de: Lent, R. Pessoas com história. As bases neurais da memória e da aprendizagem. In: Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências (Lent, R.). 2001; p.587-617, Editora Atheneu.