Bem-estar e Ciência das Relações

Maria Cristina Valzachi

Sempre me perguntei como é possível guardar em nossa cabeça todas as experiências que vivenciamos ...

Afinal, onde nossas memórias estão guardadas?

      Sempre me perguntei como é possível guardar em nossa cabeça todas as experiências que vivenciamos. Você já pensou no assunto? Temos lembranças dos mais diferentes tipos, e algumas a gente guarda com tanta riqueza de detalhes que, quando as recordamos, parecemos até revivê-las. Um dia desses, encontrei uma foto minha de quando ainda era bebê (em uma tentativa frustrada de comer uma mexerica) e comecei a recordar da casa em que morava, das brincadeiras e de como eram meus dias naquela época. Ainda bem que nossas lembranças não são armazenadas como objetos, senão ocupariam um espaço tão grande, que em muito pouco tempo não teríamos mais como guardá-las, o que seria muito triste. Sabemos que nossas memórias estão presentes em nossas vidas a todo o momento, mas afinal, onde elas estão guardadas? A dedicação de Brenda Milner no estudo do caso de um paciente que ficou conhecido apenas pelas iniciais de seu nome, H. M., contribuiu de forma decisiva para o conhecimento dos processos envolvidos no armazenamento da memória. Vamos ver um pouco melhor.

      Aos nove anos de idade, H. M. foi atropelado por uma bicicleta, e o acidente deu início a uma epilepsia. Com o passar do tempo, a doença tornou-se incapacitante, exigindo, como último recurso, uma cirurgia para a remoção dos lobos temporais mediais e do hipocampo do paciente. A operação teve êxito em diminuir as crises epiléticas, mas provocou uma perda de memória devastadora, da qual H. M. jamais se recuperou. Ele era capaz de reter informações novas por um curto período de tempo, devido à integridade de sua memória de curto prazo, e apresentava uma memória de longo prazo para eventos ocorridos antes da cirurgia, no entanto, o paciente havia perdido totalmente a capacidade de converter quaisquer novas lembranças em memória permanente. Com isso, Milner concluiu que é somente no hipocampo que os vários feixes de informação sensorial necessários à formação da memória de longo prazo se juntam, e que essa estrutura não é a responsável pelo armazenamento das memórias que já se encontram conservadas há algum tempo.

     Durante muitos anos, Milner pensou que H.M. fosse incapaz de converter qualquer memória de curto prazo em memória de longo prazo, contudo, observou que ele era capaz de aprender a desenhar o contorno de uma estrela no espelho, e sua habilidade motora melhorava a cada dia, da mesma forma como ocorreria na ausência da lesão cerebral. Sendo assim, em 1962, a pesquisadora demonstrou a existência de mais de um tipo de memória: a memória consciente (explícita), que exige participação do hipocampo, e a memória inconsciente (implícita), que não depende dessa estrutura.

     Hoje sabemos que a memória consciente fica inicialmente guardada no córtex pré-frontal, em seguida é convertida em memória de longo prazo no hipocampo e finalmente armazenada nas mesmas áreas do córtex que processaram a informação originalmente, por exemplo, as memórias das imagens visuais são armazenadas no córtex visual. A memória inconsciente, por sua vez, envolve diversos sistemas cerebrais: a associação de sentimentos a eventos ocorridos envolve uma estrutura denominada amígdala; os hábitos motores, como andar ou correr, envolvem o estriado; e as habilidades motoras e atividades coordenadas, como aquelas necessárias para acertar uma bola de basquete na cesta, envolvem o cerebelo. Por esse motivo, apesar de H. M. melhorar progressivamente no teste do espelho, devido à integridade de sua memória implícita, ele nunca se recordava de ter realizado essa tarefa no dia anterior, pelo fato de ter perdido a capacidade de armazenar a memória explícita.

     É impressionante a contribuição que o estudo da patologia de um único indivíduo foi capaz de trazer, e uma das coisas que mais desperta meu interesse sobre esse caso é o fato de que, embora H. M. acreditasse nunca ter executado aquela tarefa antes, ele melhorava sua habilidade após cada teste. Esse exemplo ilustra a influência que os processos inconscientes podem exercer sobre nossas ações, e como podemos ser guiados por eles. Se recordarmos de nossa discussão anterior, sobre como a repetição pode permitir que um aprendizado torne-se inconsciente, na verdade, o que ocorre é a transformação da memória explícita em memória implícita; por exemplo, quando estava aprendendo a dirigir, tinha que visualizar os pedais antes de ligar o carro para saber onde colocar os pés, e ficar pensando sobre quando trocar de marcha, hoje simplesmente entro e dirijo, ficou automático! Dessa forma, podemos imaginar a importância de selecionar aquilo que vamos ou não armazenar, o que me leva a outra pergunta: por que algumas memórias são mantidas durante longos períodos, enquanto outras são rapidamente perdidas? Conversaremos sobre isso em nosso próximo encontro!

 

Referências bibliográficas

Kandel, ER. Para diferentes tipos de memória, diferentes regiões do cérebro. In: Em busca da memória – o nascimento de uma nova ciência da mente (Kandel, ER). 2009; p. 211-231, Companhia das Letras.

Milner B, Squire LR, Kandel ER. Cognitive neuroscience and the study of memory. Neuron. 1998; 20:445-68;

Figura 1: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hippocampus.png

Figura 2 adaptada de: Kandel, ER. Para diferentes tipos de memória, diferentes regiões do cérebro. In: Em busca da memória – o nascimento de uma nova ciência da mente (Kandel, ER). 2009; p. 211-231, Companhia das Letras.